Sat 30 Sep 2017 02:00:50 PM -03

Geral

  • Ecologia da ação, complexidade das ações e incerteza das consequências, 100.

Simplicidade e complexidade

É a procura de uma simplicidade elementar que nos conduz a uma complexidade
fundamental.

-- 128

Vida: necessidade do genona

A generalidade produz e mantém processos organizadores que são, fisicamente,
improváveis. A generatividade física (seres organizadores de si) é sempre
espontânea, isto é, não dispõe de aparelho informacional para controlá-la
ou programá-la. Os seres vivos se desintegrariam se dependessem apenas das
regulações físicas, químicas, termodinâmicas espontâneas. A generatividade
biológica (seres auto-organizadores) comporta, necessariamente, agenciamento
genético e informação hereditária.

-- 136

Assim como a fetichização do capital econômico impede que as outras dimensões
da vida social tomem forma, a fetichização do capital genético impede que as
múltiplas dimensões da auto-organização tomem forma.

Assim, sob o duplo efeito da redução química e da coisificação informática, o
gene é isolado, hipostasiado. Apesar e por causa dos progressos da genética e
da biologia molecular o paradigma de simplificação pesa no sentido de um
subdiscurso vulgarizador, de caráter atomizador (que situa o fundamento
organizacional do ser vivo na unidade de base, isto é, na molécula, na
informação, no gene), mecanística (que reduz a lógica da organização viva à
máquina artificial), coisificador (que substancializa a informação/programa). O
subdiscurso, larvar na genética torna-se o discurso "genetista" propriamente
dito e, desenvolvendo-se sem entraves, transforma-se em mito pangenetista.
Assim, a incapacidade para conceber a unidade complexa do genos e do fenon na
auto-organização transforma o gene em gênio e o DNS em Adonai.

-- 155

Misc

O ego-autocentrismo parece invulnerável. O indivíduo não pode agir senão para
si e para os seus. Como tudo aquilo que é invulnerável, o ego-autocentrismo tem
seu ponto vulnerável, não no calcanhar, mas na cabeça, ou melhor dizendo, na
computação.  O ponto forte de todo o ser computante, que é extrair informação
do seu universo, é também o seu ponto fraco: a possibilidade de erro. A
computação pode enganar-se nos seus cálculos, ou tratar uma informação
enganadora. Assim, todo o indivíduo pode tornar-se o instrumento da sua própria
perda enquanto julga trabalhar para a sua salvação.

O ser computante pode até ser despossuído do seu próprio ego-autocentrismo,
como no caso da célula parasitada por um vírus, o qual, fazendo-a executar o
seu programa de reprodução, a faz agir para a sua própria destruição e para a
multiplicação do seu assassino. Os humanos tornaram-se mestres na sujeição dos
animais que, embora conservem a autonomia cerebral, isto é, o
ego-autocentrismo, estão de fato subjugados às finalidades dos subjugadores e
sobretudo tornaram-se mestres na sujeição do homem pelo homem, como já
indicamos.

-- 197, 198

A discriminação cognitiva de "si"

"Se algum organismo não se conhece a si próprio, como pode detectar a
presença de alguma coisa estranha?" (Vaz e Varela, 1978)

-- 181

Ou, analogamente, se um organismo parasse de se reconhecer, seu sistema imunológico poderia atacar a si mesmo.

Computo ergo sum

  • Computação, "com-puter": examinar, avaliar, estimar supor ("puter") em cojunto, ligando ou confrontando aquilo que está separado, separando ou dissociando aquilo que está ligado ("com") (183).
  • Autos: idem e ipse (196).
  • Princípio de exclusão: identificação do si e do não-si.
  • Vida: auto-computante: computa a si mesma.
  • Si: referência corporal objetiva (213), corporalidade (214).
  • Eu: auto-referência subjetiva do ser vivo (190), afirmação egocêntrica (213).
  • Mim: auto-referência objetiva do ser vivo (190), referência objetiva do eu e referência subjetiva do si (213).

Trechos:

O cogito começa a aparece como um anel espiral.

-- 202

Ora, evidentemente, as demonstrações "idealistas" que desprendem o sujeito da
órbita física e do mundo das coisas não são de modo algum comprobatórias. Em
geral, o cogito é insuficiente como prova científica ou lógica para dizer
alguma coisa sobre a natureza material ou imaterial do mim, sobre a sua
realidade transcendental ou fenomênica. Toda a busca de prova, deste domínio,
necessita da comunicação do cogitante com o universo exterior e da
intercomunicação dos cogitantes entre eles.  Ora, o cogito funda-se
exclusivamente na autocomunicação do sujeito consigo mesmo e a sua validade
concerne, exclusivamente, a qualidade de sujeito. E é precisamente esse caráter
de autocomunicação que, embora constitua o seu limite, constitui a riqueza do
cogito, pensamento recorrente em ação, gerando e regenerando o seu próprio
começo, a sua própria origem, produzindo nesse mesmo processo sua unidade
complexa e as suas qualidades emergentes, que são aqui as qualidades próprias
do sujeito consciente.

--- 204, 205

O computo não "pensa" de modo ideal, isto é, isolável. "Pensa" (computa) de
modo organizacional. O computo concerne o "eu sou", não no plano da consciência
ou da representação, mas no plano da produção/geração/organização. Não existe
certamente constituição de sujeito consciente ao nível da "Escherichia coli".
Mas, talvez, constituição do sujeito puro e simples no e pelo "computo".

-- 207

Como Piaget indicou, freqüentemente a organização do conhecimento humano
constitui um desenvolvimento original da organização biológica e, por
conseguinte, "existem funções gerais comuns aos mecanismos orgânicos e
cognitivos" (Piaget, 1967, p. 206).  Neste sentido, "o funcionamento cerebral
exprime ou prolonga formas muito gerais e não particulares de organização
(biológica)" (Piaget, 1967, p. 545). Podemos pois dizer que, "numa certa
profundidade, a organização vital e a organização mental constituem apenas uma
única e mesma coissa" (Piaget, 1968, p. 467). Podemos portanto ir ainda mais
longe e considerar que todo o ato de organização viva comporta uma dimensão
cognitiva.

[...]

Assinalar um fenômeno de conhecimento no ser celular aparece decerto como uma
verdadeira projeção retrospectiva do indiferenciado. Mas esta projeção pode
justificar sua necessidade: seria absurdo negar a atividade cognitiva num ser
que apresenta suas condições (aparelho computante) e os seus resultados
(distinção do si/não-si, extração de informações do universo exterior, etc.). A
idéia de que a auto-organização viva comporta uma dimensão cognitiva dá sentido
e coerência ao conjunto dos dados relativos à organização celular.  Mas, ao
mesmo tempo, traz um aparente não-sentido à idéia de conhecimento, uma vez que
trata de um conhecimento que não se conhece a si mesmo. Schelling dizia: "A
vida é um saber que ignora a si mesmo...".

-- 207, 208

A partir daí, o paradoxo do conhecimento que não se conhece agrava-se: como
pode haver autoconhecimento para um conhecimento que não se conhece?

[...]

Estaríamos inteiramente desarmados diante do problema do autoconhecimento se
não tivéssemos já reconhecido a auto-referência no âmago de todos os processos
celulares e de informação (portanto de autoinformação), de comunicação
(portanto de autocomunicação), de computação (portanto de autocomputação).
Significa, ao mesmo tempo, que o circuito auto-referente de si a si faz
regressar o computado ao computador; sendo o computado também o computador, o
computado-computador regressa à computação do computador.  Trata-se de um
circuito autocognitivo no qual o computador está apto não só para computar-se
na parte por intermédio do todo, no todo por intermédio das partes, mas também
para objetivar-se como computado (si, mim) e ressubjetivar-se como computador
(eu).

-- 209

Devemos também supor que esses termos [...] são como que instâncias
referenciais que fazem circular a reflexão de um ponto de vista a outro, cada
uma das quais permite ao sujeito reconhecer ou afirmar um dos seus rostos.

-- 213

Já vimos aquilo que separa uma computação cerebral que só gera representações e
uma computação celular que gera a vida. O computo celular produz o ser objetivo
e, ao mesmo tempo, a modalidade subjetiva do ser. É o operador do circuito no
qual, simultaneamente, o ser e a modalidade subjetiva do ser se geram e se
regeneram, permanentemente.

-- 214

Temos que entender radical, fundamental, plenamente: computo ergo sum. Computo
não significa "tenho um computador na minha máquina". Não significa apenas "sou
um ser computante". Significa "eu computo, logo eu sou".

-- 216

Existencialismo

Turnover molecular, turbilhão computante (221, dentre outras). Jogo, erro e morte (217), a tragédia básica da existência e a solidão comunicante (218):

Assim, a autou-afirmação individual do indivíduo-sujeito é a de um ator que
joga o jogo de viver para ganhar a vida. A noção de ator é existencial no
sentido em que o ator se joga a si mesmo -- joga a sua vida -- na busca, no
esforço, no perigo no seio do "teatro" natural que é o seu ambiente. A condição
existencial do jogo marca toda a vida: é a natureza sempre renascente e a luta
sempre renascente contra a incerteza.

O ator vivo mais modesto dispõe, para jogar o seu jogo, do seu capital de
informações hereditárias e do computo egocêntrico que lhe permite transformar a
informação em programa, extrair informações do mundo exterior, agir em função
da situação. mas o computo comporta a sua brecha de incerteza: o risco de erro.
Toda a existência viva traz consigo o risco permanente de error (no
funcionamento auto-organizador, na percepção do mundo exterior, na escolha ou
na decisão, na estratégia do comportamento) e todo o risco de erro traz consigo
o risco e morte.

[...]

Como vimos, a morte não é o inimigo mortal da vida (porque, sem deixar de ser
desintegrante, está integrada nas transformações e regenerações da vida). Mas é
inimiga mortal do indivíduo-sujeito.

-- 217

Toda a existência que joga é, simultaneamente, jogada e joguete. [...] O
estatuto do objetivo é incerto, improvável, aleatório, perecível, mas este
indivíduo, por improvável e pouco necessária que seja a sua vinda ao mundo, por
inexoravelmente mortal que ele seja, torna-se, logo que nasce e se forma, um
ser absolutamente necessário "para si" e tende a viver a todo custo,
indefinidamente. Aí reside a tragédia da existência viva. O indivíduo é um
quantum de existência, efêmero, descontínuo, pontual, um "ser-lançado-no-mundo"
entre ex nihilo (nascimento) e in nihilo (morte) e é ao mesmo tempo um sujeito
que se autotranscende acima do mundo. Para ele, é o centro do universo. Para o
universo, não passa de um vestígio corpuscular, um estremecimento de onda. Para
ele é sujeito, para o universo é objeto. É a sua própria necessidade, embora
tenha nascido por acaso, viva no acaso e morra no acaso. Nasceu no meio de
milhões de sementes inutilizadas, dilapidadas, volatilizadas, formou-se num
mistério de agregação, de epigenetização, de animação, que, do nada, produziu
este instante periférico que se julga o umbigo do mundo.

[...]

O ser vivo, por constituição, está destinado à solidão existencial. Produz e
mantém a sua membrana-fronteira. Opera a cisão ontológica entre si e não-si. A
sua computação está numa câmara escura, e as informações que extrai são
traduções.

[...]

A solidão, a separação, a incerteza constituem as condições prévias e
necessárias da comunicação. Só os solitários podem e devem comunicar.

-- 218

O computo tem o papel vital e fundamental de traduzir acontecimentos em
informações a computar por e para si. A partir daí, surge um problema que se
tornará permanente e agudo na existência animal: como evitar o erro, como
induzir em erro o adversário, o inimigo?

[...]

Como veremos cada vez mais claramente, a afetividade é a consequência, não a
origem, da existência subjetiva.

[...]

A relação entre recepção de estímulos exteriores (a bactéria dispõe de
químico-receptores) e o computo abre a porta à sensibilidade. A partir daí,
tudo aquilo que acontece de nefasto ou benéfico é não só computado como "bom"
ou "mau" (para si), mas também pode ser sentido como irritante ou apaziguante.
As sensibilidades e irritabilidades progridem com o desenvolvimento dos
receptores sensoriais e das redes nervosas.

-- 219

O Sujeito

Sujeito (220):

  • Esqueleto lógico-organizacional e carne ontológico-existencial.
  • Lógico: auto-referência, distribuidor de valores.
  • Organizacional: conceito inerente e necessário à auto-(geno-feno-eco)-organização.
  • Ontológico: sua afirmação individual egocêntrica é inerente e necessária à definição do ser vivo.
  • Existencial: cada um dos seus traços constitutivos comporta uma dimensão existencial.

Trechos:

O sujeito, repito, não é uma substância, uma essência, uma forma.
É uma qualidade de ser [...]

--- 221

Assim, podemos ver que a qualidade de sujeito não é um epifenômeno ou uma
superestrutura da individualidade viva, mas uma infra-estrutura que permite
inscrever muito profundamente o indivíduo e o genos um no outro. Com efeito,
não é apenas a mensagem genética que é necessária à constituição do sujeito.
É a estrutura reprodutora que é indispensável à estrutura do sujeito, ao menos
na esfera originárias e fundamental do unicelular. Reciprocamente, não é
apenas a existência de um indivíduo que é necessária à reprodução genética.
É a estrutura primeira do sujeito que é indispensável à estrutura reprodutora
primeira.

--- 223

Marx dizia que a chave da autonomia do macado reside na autonomia do homem.
Entendia com isso que o desenvolvimento, no homem, de qualidades potenciais
ou embrionárias no macaco, permitia perceber aquilo que seria invisível
se tivéssemos considerado o macaco isoladamente da evolução pela qual o
metamorfoseou em homem. Em outras palavras, o ulterior permite conceber o
anterior. Temos, pois, de prolongar a fórmula marxiana relativa ao macaco pela
proposição contrária mas complementar, e pela conjugação em anel destas duas
proposições [...] Em outras palavras, a chave de ambos está no movimento
e confrontação initerrupto produtor de hipóteses e de teorias.

-- 224

Comunicação, redes e o outro (alteridade)

  • Egoísmo e altruísmo, 232.

Trechos:

A faculdade de computar o outro como alter ego/ego alter é sem dúvida
inseparável da faculdade de se computar a si "objetivamente" como um outro
si-mesmo (alter ego) e de identificar este alter ego com a sua própria
identidade subjetiva. [...] A comunicação entre congêneres exterioriza,
num outro semelhante a si, os processos internos de objetivação/subjetivação,
proteção/identificação. Constitui-se, entre os dois parceiros, de modo
recíproco, um circuito de proteção (de si sobre o outro) e de identificação
(do outro consigo).

-- 228

Assim, o anel que encerra o sujeito sobre si mesmo abre-lhe ao mesmo tempo a
possibilidade de comunicar-se com outrem.

-- 229

Estratégia e inteligência

Veremos cada vez melhor que as noções de arte, estratégia, inteligência,
bricolagem (estratégia organizadora de um novo objeto por conversão de antigos
objetos ou elementos da sua finalidade ou função) são intercomunicantes.

[...]

Quando programa tende a comandar, diminuir, suprimir as estratégias, a
obediência mecânica e míope torna-se modelo de comportamento. À escala humana,
a estratégia necessita de lucidez na elaboração e na conduta, jogo de
iniciativas e de responsabilidades, pleno emprego das competências individuais,
isto é, pleno emprego das qualidades do sujeito.  Eis por que, entre
parênteses, o Método aqui procurado nunca será um programa, isto é, uma receita
preestabelecida, mas um convite e uma incitação à estratégia do pensamento.

-- 257

Liberdade

  • Definição, 258.
  • Suicídio, 259.

Sociedades: entidades de terceiro tipo

Não existe fronteira bem nítida entre as associações mais ou menos frouxas e as
sociedades rudimentares. Mas o que importa aqui é definir um fenômeno não na
sua fronteira incerta, mas na sua emergência própria. O fenômeno social emerge
quando as interações entre os indivíduos do segundo tipo produzem um todo
não-redutível aos indivíduos e que retroage sobre ele, isto é, quando se
constitui um sistema. Existe, portanto, sociedade quando as interações
comunicadoras/associativas constituem um todo organizado/organizador, que é
precisamente a sociedade, a qual, como toda a entidade de natureza sistêmica, é
dotada de qualidades emergentes e, com as suas qualidades, retroage enquanto
todo sobre os indivíduos, transformando-os em membros desta sociedade.

-- 264

O sistema social não é apenas um sistema: é uma organização que organiza
retroativamente a produção e a reprodução das interações que a produzem,
assegura a sua homeostasia através do turnover dos indivíduos que morrem e
nascem e, assim, continua a ser um ser-máquina autoprodutor e auto-organizador.

-- 265

Totalitarismo

Um novo e enorme poder de Estado tende a concentrar-se ao longo do século XX.

O Estado torna-se cada vez mais Estado-providência e Estado assistencial
(Welfare state).  Num sentido, dedica-se cada vez mais à proteção e ao
bem-estar dos indivíduos, mas, ao mesmo tempo, estende as suas competências a
todos os domínios das vidas individuais, doravante encerradas numa rede
polimórfica, simultaneamente casulo (protetor mas eventualmente infantilizante)
e armadilha. Assim, desenvolve-se um Estado, de certo não totalitário, mas
totalizante, isto é, englobando todas as dimensões da existência humana.

Os notáveis desenvolvimentos informáticos, de que hoje se discutem as
ambivalências (Nora, Minc, 1978), deixam entrever espantosas possibilidades de
desconcentração comunicacionais e de que beneficiariam os indivíduos. Mas, ao
mesmo tempo, a informática dá a um aparelho de Estado central a possibilidade
de agrupar e tratar todas as informações acerca de um indivíduo de modo muito
mais ramificado e preciso que o controle neurocerebral sobre as células dos
nossos organismos. A partir daí, um código policial/tecnológico (munido de
dispositivos de detecção e de escuta em todos os terrenos) pode doravante
exercer-se sobre o desvio, anomalia, originalidade. A isto é necessário
acrescentar já as futuras ações bioquímicas sobre o espírito ----- cérebro

humano, que permitirão estabelecer uma normalização generalizada de todo o
desvio. Doravante, o Estado encontra-se dotado de poderes que, virtualmente,
excedem todos os poderes de controle e de intervenção jamais concentrados.

Aqui mesmo, temos de inscrever o processo aparentemente marginal,
sociologicamente menor, que já constatei (Método I): o conhecimento científico
produz-se cada vez menos para ser pensado e meditado por espíritos humanos, mas
cada vez mais acumulado para a computação dos seus computadores, isto é, para a
utilização das entidades superindividuais, em primeiro lugar a entidade
supercompetente e onipresente: o Estado. Ao mesmo tempo e correlativamente,
essa ciência cega-nos: o resto do nosso mundo, da nossa sociedade, do nosso
destino é despedaçado por um conhecimento científico que, atualmente, ainda é
incapaz de pensar o indivíduo, incapaz de conceber a noção de sujeito, incapaz
de pensar a natureza da sociedade, incapaz de elaborar um pensamento que não
seja unicamente matematizado, formalizado, simplificador, mas, ao contrário,
muito capaz de fornecer aos poderes novas técnicas de controle, de manipulação,
de opressão, de terror, de destruição.

Ao aproximarmo-nos, pois, do momento em que podemos considerar que todos estes
processos conjuntos poderiam permitir ao ser do terceiro tipo realizar-se em
onipotência, não só sujeitando-nos e manipulando-nos, mas também
infantilizando-nos, irresponsabilizando-nos e despossuindo-nos da aspiração ao
conhecimento e do direito ao juízo.

Tal hipótese não é brincadeira intelectual, pois o Estado dedicado a essa
realização surgiu no século XX: o Estado totalitário. Instala-se, sob diversas
variantes, em todos os continentes, em todas as civilizações, em todas as
sociedades, sob o impulso, o controle, a apropriação de um aparelho soberano: o
partido detentor de todas as competências, possuidor de verdade sobre o homem,
a história, a natureza.

A partir daí, bastaria que este Estado totalitário concentrasse e utilizasse de
modo sistemático todas as formas de dominação/controle, não só burocráticas,
policiais, militares, mitológicas, políticas, mas também científicas, técnicas,
informáticas, bioquímicas, para que se pudesse operar uma sujeição das classes,
grupos, indivíduos, já não apenas generalizada mas irreversível; regressões dos
direitos individuais já não são apenas generalizadas mas irreversíveis.
Podemos, certamente, esperar que nossos totalitarismos contemporâneos sejam os
monstros provisórios nascidos das agonias e gestações deste século. Mas podemos
recear também que estes monstros se tornem duradouros na e pela
sujeição/controle estrutural dos indivíduos do segundo tipo e, por isso,
constituam os artesãos de um desenvolvimento decisivo do ser do terceiro tipo.

-- 281, 282

Autos

Autos significa "o mesmo": não identidade consigo mesmo fundada numa
invariância estáica, não identidade de dois termos distintos e semelhantes, mas
unidade de um anel que, girando incessantemente do mesmo ao si mesmo, produz e
reproduz o mesmo.

O autos pertence à raça dos anéis turbilhonares. Um ciclo genérico de
reproduções faz suceder os vivos aos vivos. Um turnover fenomênico faz suceder
as moléculas às moléculas, as células às células (se policelular), os
indivíduos aos indivíduos (sociedade). Assim como um turbilhão desenha uma
figura estável no seio do fluxo, igualmente, e ainda mais, o dinamismo
turbilhonar do autos produz, a partir de uma inscrição genética invariante,
formas corporais aparentemente estáticas (células, organismos, sociedades) e
aparece desenhar no tempo um esquema ou pattern fixo.  Aqui reencontramos o
vínculo pseudo-antinômico entre o movimento irreversível e o estado
estacionário, dinamismo e a estabilidade, já bem elucidado (O Método !).

-- 287

O princípio de integração próprio de autos é, portanto, um princípio
polianelante complexo que permite construir, simultaneamente, vários graus de
auto-organização, de individualidade, de ser, de existência. Uma propriedade
notável destas integrações mútuas é que as relações de pertença não anulam as
relações de exclusão: cada ser permanece, no seu grau, um indivíduo-sujeito
egocêntrico, embora "pertença" a um mega-ser, ele mesmo egocêntrico, de que é
uma parte ínfima e enferma.

De onde as consequências perturbadoras para a ontologia tradicional: embora os
seres-sujeitos se excluam uns aos outros do seu lugar egocêntrico, podem,
contudo, constituir vários seres em um, um ser em vários e, ao mesmo tempo,
fragmentos de mega-seres.

-- 290

Hierarquia e especialização

  • Problemas e vulnerabilidades da estrutura em rede centralista/hierárquica/especializada: 359.

Trechos:

A hierarquia constitui uma estrutura de sujeição, na qual os seres celulares
estão sujeitos aos indivíduos policelulares, sujeitos Pas sociedades de que
fazem parte. Os seres sujeitados continuam sujeitos, mas na ignorância (e, no
caso dos humanos, na inconsciência), trabalham para os fins dos sujeitos que os
sujeitam.

Mesmo quando há arquitetura de emergências, a organização hierárquica comporta
uma certa alienação do sujeito (que trabalha para os outros trabalhando para si)
e uma virtualidade de subjugação e de exploração (remeto para as definições
dadas na primeira parte). É, efetivamente, a partir do controle e da dominação:
do baixo pelo alto, da parte pelo todo, do micro pelo macro, dos executantes
pelos componentes, dos informados pelos informantes, que se estabelecem as
relações de exploração infra-organizacional. E de fato, as "altas" formas
globais (do organismo, da sociedade) mantêm-se e perduram no e pelo turnover
das "baixas" formas, ou seja, vivem de mortes/renascimentos initerruptos dos
indivíduos celulares, verdadeiro fluxo regenerador que mantém a permanência,
a estabilidade, a sobrevivência do indivíduo sujeitante.

-- 350-351

A organização recorrente relativiza a noção de hierarquia, uma vez que a
hierarquia depende, na sua própria existência, daquilo que depende dela.
Temos de ir mais longe e reconhecer que, em toda a organização viva, a
organização hierárquica precisa de organização não-hierárquica.

[...]

A anarquia não é a não-organização, é a organização que se efetua a partir
das associações-interações sinérgicas entre seres computantes, sem que,
para tal, haja necessidade de comando ou controle emanando dum nível
superior. É assim que se constituem as eco-organizações. Ora esta anarquia
sem controle superior constitui um todo que estabelece seu controle superior.

-- 352

Enfim, o parasitismo desenvolve-se no seio das organizações
cêntricas/hierárquicas/especializadas do nosso universo antropossocial. Com
efeito, o indivíduo ou a casta que detêm o poder de Estado podem saciar sem
freios (não sendo controlados pela regra que controlam) os seus apetites
egocêntricos e parasitar o conjunto do corpo social, assumindo mais ou menos
corretamente as suas funções de interesse geral.

-- 359

Toda a concepção ideal de uma organização que seria apenas ordem,
funcionalidade, harmonia, coerência é um sonho demente de ideólogo ou/e de
tecnocrata. A irracionalidade que elminaria a desordem, a incerteza, o erro não
é senão a irracionalidade que eliminaria a vida.

-- 365

Parece que toda a passagem de um micronível de organização a um macroniível,
como do unicelular ao ser policelular, da sociedade arcaica de algumas centenas
de membros à sociedade histórica de milhões de indivíduos, a complexidade da
nova macroorganização é menor do que a da microorganização que intefra ou
desintegra. Assim, os primeiros organismos policelulares, de estrutura
demasiado frouxa ou demasiado rígida, não puderam elevar-se até o nível de
complexidade organizacional da célula, e foram necessários unúmeros
desenvolvimentos evolutivos (desenvolvimentos de órgãos e aparelhos internos,
entre os quais o aparelho neurocerebral, o aparelho sexual, etc.) para que
organismos superiores atinjam novos níveis de complexidade.

[...]

Talvez -- talvez? -- toda mudança de escala, todo salto em direção a um
metassistema mais amplo deva apagar-se, num primeiro estádio, com uma pobreza
organizacional, misto de ordem rígida e de desordem destruidora, antes de
aparecerem as estruturas e emergências novas? E, neste sendido, estamos na era
de gênese uraniana de uma organização social que ainda não encontrou a
hipercomplexidade que torna possível a evolução cerebral pelo Homo sapiens (cf.
Morin, 1973, p. 206-209).

Com efeito, parece possível conceber um progresso organizacional baseado na
regressão das especializações, das hierarquias, da centralização -- de onde a
regressão correlativa das subjugações/sujeições --, no desenvolvimento das
comunicações e confraternizações, no pleno emprego das qualidades estratégicas,
inventivas, criativas, ainda totalmente inibidas ou por desbastar na nossa
sociedade. 

-- 368-369

Bios

  • Ser vivo gerador de acaso; liberdade, criatividade e eventualidade, 409.
  • Autopoiese, 417.

Trechos:

Vimos que, para lá de um certo número de interações e de indeterdependências,
para lá de um certo grau de complicação, se torna impossível calcular e
conhecer os processos de um fenômeno. Niels Bohr formulara-o à sua maneira:
"É impossível efetuar medidas físicas e químicas completas sobre um
organismo sem matá-lo".

-- 421

Complexidade, lógica e contradição

  • Simples, simplicidade, simplificação na ciência, 432.

Trechos:

O pensamento complexo, animado pela dupla exigência de completude (não a
"totalidade", mas a não-mutilação) e de coesão, conduz num determinado momento
a uma brecha lógica: a contradição. Será necessário que um diktat lógico
exterior e abstrato condene a exigência de lógica interior que conduziu à
contradição? Não será antes necessário imaginar que o surgimento da contradição
opera a abertura súbita de uma cratera no discurso sob o impulso das camadas
profundas do real?

-- 425

A lógica aristotélica corresponde à igualdade estática imediata das "coisas",
objetos sólidos como pedra ou mesa, recortados ou isolados no tempo e no
ambiente.  O princípio do terceiro excluído e o princípio de identidade
concernem sistemas "fechados", que definimos não só sem referência ao seu
ambiente, mas também sem ter em conta o segundo princípio da termodinâmica, que
constitui um princípio de transformação interna dos sistemas fechados. Assim,
logo que se trata de sistema aberto, e singularmente de vida, "o princípio do
terceiro excluído de identidade define um ser empobrecido, separado entre meio
e indivíduo" (Simondon, 1964, p.17).

Embora insuficientes para caracterizar as entidades complexas, esta lógica
permite-nos arrancar os seres ou objetos à confusão, identificá-los num
primeiro grau, e é necessária às operações seqüenciais do raciocínio
complexo. Repetimos: não só o raciocínio complexo deve ser coerente mas é a
sua própria coerência que conduz às contradições.

Quando o pensamento simplificador encontra uma contradição que não pode ser
superada, volta atrás exclamando "erro'. O pensamento complexo aceita o
desafio das contradições. Não poderia ser, como a dialética, a "superação"
(Aufhebung) das contradições. É a sua desocultação, a sua evidenciação,
e recorre ao corpo-a-corpo com a contradição.

[segue uma bela descrição sobre o surgimento de uma contradição]

Daí em diante importa inverter o modo de pensamento simplificador que,
postulando a adequação absoluta entre a lógica e o real, opera de fato
a redução "idealista" do real à lógica. Temos de reconhecer que real
e lógico não se identificam totalmente.

[...]

Para o conhecimento complexo, a contradição não é somente o sinal de um absurdo
de pensamento. Pode tornar-se o detector de camadas profundas do real.
Constitui então já não o detector do erro e do falso mas o indício e o anúncio
do verdadeiro.

[prossegue com uma bela fala sobre a lógica ilógica do vivo e o enriquecimento
 do princípio de incerteza]

[...]

O pensamento não serve à lógica: serve-se dela. O problema é: como servir-se?

-- 427-429

Complexidade e simplicidade

  • Robotização do ser vivo pelo pensamento simplificador, 434.
  • Marxismo, sistemismo e simplificação, 435.

Trechos:

A complexidade é a união da simplificação e da complexidade.

[...]

O pensamento complexo deve lutar contra a simplificação, utilizando-a
necessariamente. Existe sempre um duplo jogo no conhecimento complexo:
simplificar ----> complexificar. No duplo jogo, o complexo volta
   \                   /
    ---------<--------´

incessantemente como pressão da complexidade real e consciência da
insuficiência dos nossos meios intelectuais diante do real (por isso,
o pensamento complexo é o pensamento modesto que se inclina diante
do impensável).

-- 432-433

O esforço da complexidade é aleatório e difícil. [...] É porque
integra aquilo que desintegra o pensamento que ela vive [a estratégia
do pensamento complexo], como tudo quanto é vivo, à temperatura da
sua própria destruição. [isto é citado novamente na página 438]

[...]

A complexidade é um termo-chave. Mas não é uma palavra dominante.

-- 435

Viver

  • Simmel, 440.
  • Simondon, 441.
  • Von Neumann, jogo, 446.
  • Organ, fervilhar ardentemente, 465.

Trechos:

O ser que nasce não pediu para viver, mas logo que nasce, só pede para viver.
Nenhum vivo quis viver, no entanto, todo o vivo quer viver.

-- 438

A definição de Bichat: "A vida é o conjunto das funções que resistem à morte."

[...]

Atlan formula o princípio complementar e antagônico do princípio de Bichat:
"A vida é o conjunto das funções capazes de utilizar a morte"
(Atlan, 1979, p. 278)

-- 439-440

Ninguém nasce só. Ninguém está só no mundo, no entanto cada um está só
no mundo.

-- 442

Os destinos são diferentes, desiguais, incomensuráveis, que seria absurdo
hierquizá-lo (sic). Mas certamente existem vidas infernais: parasitas,
subjugadas, subdesenvolvidas, atrofiadas...

-- 443

Manipulação da vida

A ação do homem sobre a vida começou desde a pré-história por domesticação,
sujeição, subjugação, e prosseguiu como manipulação através de hibridações
e cruzamentos. A manipulação alcança hoje o santuário dos genes.

[...]

Por um lado, há um ganho potencial de complexidade por elevação da produção
industrial do nível do artefato ao da organização viva. Existe redução
potencial do ser vivo ao estatuto do artefato e praticamente transformação
dos seres vivos em máquinas artificiais (já a criação industrial dos
porcinos e bovinos os transforma em puras e simples máquinas de fazer carne).

Assim, a progressão do industrial tornado vivo corre o risco de ser uma
regressão da vida, que vai se tornando industrial, tornando-se a
bioindústria o prolongamento tecnossociológico da manipulação experimental
que trata os seres celulares e pluricelulares como agrupamentos de
peças soltas.

Mais profunda e amplamente, está aberta a porta para a manipulação ilimitada
sobre a vida. Encontramo-nos no momento de uma tomada de poder decisiva.
Podemos imaginar, como me indica Gaston Richard, que os microorganismos
podem efetuar todas as operações naturais necessárias à nossa vida, inclusive
a fotossíntese, tornando assim obsoletas a nossa preocupação de preservar
ecossistemas: de onde a possibilidade de liquidação geral de todas as
espécies vegetais ou animais, deixando frente a frente, no Planeta Terra,
o homo e a Escherichia coli.

[...]

O novo poder sobre a vida será tão fundamentalmente controlador e tão
fundamentalmente incontrolador quanto foi a tomada de poder sobre a energia
atômica há quarenta anos. E concerne, mais íntima e fundamentalmente ainda, o
poder sobre o homem.

-- 469-470