Sat 30 Sep 2017 02:00:50 PM -03

  • Autor: J. D. Nasio.
  • Ano: 210.
  • Editora: Zahar.

Trechos

A imagem do ser perdido não deve se apagar; pelo
contrário, ela deve dominar até o momento em que — graças ao luto
— a pessoa enlutada consiga fazer com que coexistam o amor pelo
desaparecido e um mesmo amor por um novo eleito. Quando essa
coexistência do antigo e do novo se instala no inconsciente, podemos
estar seguros de que o essencial do luto começou.

-- 13

Eu também estava surpreso de ter
expresso espontaneamente, em tão poucas palavras, o essencial da
minha concepção de luto, segundo a qual a dor se acalma se a pessoa
enlutada admitir enfim que o amor por um novo eleito vivo nunca
abolirá o amor pelo desaparecido.

-- 14

dar um sentido à dor do outro significa, para o psicanalista,
afinar-se com a dor, tentar vibrar com ela, e, nesse estado de resso-
nância, esperar que o tempo e as palavras se gastem.

-- 16

Ao longo destas páginas, gostaria de transmitir o que eu próprio aprendi,
isto é, que a dor mental não é necessariamente patológica; ela baliza
a nossa vida como se amadurecêssemos a golpes de dores sucessivas.

-- 17-18

Para quem pratica a psicanálise, revela-se com toda a evidência —
graças à notável lente da transferência analítica — que a dor, no coração
do nosso ser, é o sinal incontestável da passagem de uma prova. Quando
uma dor aparece, podemos acreditar, estamos atravessando um limiar,
passamos por uma prova decisiva. Que prova? A prova de uma
separação, da singular separação de um objeto que, deixando-nos súbita
e definitivamente, nos transtorna e nos obriga a reconstruir-nos.

-- 18

O luto
do amado é, de fato, a prova mais exemplar para compreender a natureza
e os mecanismos da dor mental. Entretanto, seria falso acreditar que a
dor psíquica é um sentimento exclusivamente provocado pela perda de
um ser amado. Ela também pode ser dor de abandono, quando o amado
nos retira subitamente o seu amor; de humilhação quando somos
profundamente feridos no nosso amor-próprio; e dor de mutilação
quando perdemos uma parte do nosso corpo. Todas essas dores são,
em diversos graus, dores de amputação brutal de um objeto amado, ao
qual estávamos tão intensa e permanentemente ligados que ele regulava
a harmonia do nosso psiquismo. A dor só existe sobre um fundo de amor.

-- 18

Antes de tudo, a dor é um afeto, o derradeiro
afeto, a última muralha antes da loucura e da morte. Ela é como que
um estremecimento final que comprova a vida e o nosso poder de nos
recuperarmos. Não se morre de dor. Enquanto há dor, também temos
as forças disponíveis para combatê-la e continuar a viver. É essa noção
de dor-afeto que vamos estudar nos primeiros capítulos.

-- 19-20

Quer se trate de uma dor corporal provocada por uma lesão dos
tecidos ou de uma dor psíquica provocada pela ruptura súbita do laço
íntimo com um ser amado, a dor se forma no espaço de um instante.
Entretanto, veremos que a sua geração, embora instantânea, segue um
processo complexo. Esse processo pode ser decomposto em três tem-
pos: começa com uma ruptura, continua com a comoção psíquica que
a ruptura desencadeia, e culmina com uma reação defensiva do eu para
proteger-se da comoção. Em cada uma dessas etapas, domina um
aspecto particular da dor.

-- 20

Como diferencia ele cada um desses afetos? Propõe o
seguinte paralelo: enquanto a dor é a reação à perda
efetiva da pessoa amada, a angústia é a reação à
ameaça de uma perda eventual.

-- 27

Mas qual é essa reação? Diante do transtorno pul-
sional introduzido pela perda do objeto amado, o eu
se ergue: apela para todas as suas forças vivas —
mesmo com o risco de esgotar-se — e as concentra
em um único ponto, o da representação psíquica do
amado perdido. A partir de então, o eu fica inteira-
mente ocupado em manter viva a imagem mental do
desaparecido. Como se ele se obstinasse em querer
compensar a ausência real do outro perdido, magnifi-
cando a sua imagem. O eu se confunde então quase
totalmente com essa imagem soberana, e só vive
amando, e por vezes odiando a efígie de um outro
desaparecido.

-- 28